Castro Alves
As duas flores

São duas flores unidas,
São duas rosas nascidas
Talvez no mesmo arrebol,
Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.

Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.

Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.

Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!



Cecília Meireles
Pequena Flor

Como pequena flor que recebeu uma chuva enorme
e se esforça por sustentar o oscilante cristal das gotas
na seda frágil e preservar o perfume que ai dorme,

e vê passarem as leves borboletas livremente,
e ouve cantarem os passares acordados nesta angústia,
e o sol claro do dia as claras estátuas beijando sente.

e espera que se desprenda o excessivo.úmido orvalho
pousado, trêmulo, e sabe que talvez o vento
a libertasse, porém a desprenderia do galho,

e nesse tremor e esperança aguarda o mistério transida
assim repleto de acasos e todo coberto de lágrimas
há um coração nas lânguidas tardes que envolvem a vida.



Cora Coralina
A flor

Na haste
hierática e vertical
pompeia.
Sobe para a luz e para o alto
a flor...

Ainda não.

Veio de longe
Muda viajeira
dentro de um plástico esquecida.
Nem cuidados dei
à grande e rude matriz fecundada.
Apanhada num monte de entulho de lixeira.

“Cebola brava” na botânica
sapiente de seu Vicente.
Oitenta e alguns avos de enxada e terra.
Sabedoria agra.
Afilhado do Padim Cícero.
Menosprezo pelas “flores”:
“De que val’isso?”
Displicente, exato, irredutível.

E eu, meu Deus,
extasiada,
vendo, sentindo e acompanhando,
fremente,
aquela inesperada gestação.

– Um bulbo, tubérculo, célula
de vida rejeitada, levada na hora certa
à maternidade da terra.

A Flor...

Ainda não.
Espátula. Botão
hígido, encerrado, hermético,
inviolado
no seu mistério.
Tenro vegetal, túmido de seiva.
Promessa, encantamento.
Folhas longas, espalmadas.
Espadins verdes
montando guarda.

A expectativa, o medo.
Aquele caule frágil
ser quebrado no escuro da noite.
O vento, a chuva, o granizo.
A irreverência gosmenta
de um verme rastejante.
O imprevisto atentado
de alheia mão
consciente ou não.

Alerta. Insone.
Madrugadora.

Na manhã mal nascida,
toda em rendas cor-de-rosa,
túrgida de luz,
ao sol rascante do meio-dia.
No silêncio serenado da noite
eu, partejando o nascer da flor,
que ali vem na clausura
uterina de um botão.
Rombóide.

Para a Flor...

Chamei a tantos...
Indiferentes, alheios,
ninguém sentiu comigo
o mistério daquela liturgia floral.
Encerrada na custódia do botão,
ela se enfeita para os esponsais do sol.
Ela se penteia, se veste nupcial
para o esplendor de sua efêmera
vida vegetal.

Na minha aflita vigília
pergunto:
– De que cor será a flor?

Chamo e conclamo de alheias distâncias
alheias sensibilidades.
Ninguém responde.
Ninguém sente comigo
aquele mistério oculto
aquele sortilégio a se quebrar.

Afinal a Flor...

Do conúbio místico da terra e do sol
– a eclosão. Quatro lírios
semi-abertos,
apontando os pontos cardeais
no ápice da haste.
Vara florida de castidade santa.
Cetro heráldico. Emblema litúrgico
de algum príncipe profeta bíblico
egresso das páginas sagradas
do Livro dos Reis ou do Habacuc.

E foi assim que eu vi a flor.



Fagundes Varela
A FLOR DO MARACUJÁ

Pelas rosas, pelos lírios,
Pelas abelhas, sinhá,
Pelas notas mais chorosas
Do canto do sabiá,
Pelo cálice de angústias
Da flor do maracujá!

Pelo jasmim, pelo goivo,
Pelo agreste manacá,
Pelas gotas de sereno
Nas folhas do gravatá,
Pela coroa de espinhos
Da flor do maracujá!

Pelas tranças de mãe-d’água
Que junto da fonte está,
Pelos colibris que brincam
Nas alvas plumas do ubá,
Pelos cravos desenhados
Na flor do maracujá!

Pelas azuis borboletas
Que descem do Panamá,
Pelos tesouros ocultos
Nas minas do Sincorá,
Pelas chagas roxeadas
Da flor do maracujá!

Pelo mar, pelo deserto,
Pelas montanhas, sinhá!
Pelas florestas imensas,
Que falam de Jeová!
Pela lança ensangüentada
Da flor do maracujá!

Por tudo o que o céu revela,
Por tudo o que a terra dá
Eu te juro que minh’alma
De tua alma escrava está!…
Guarda contigo este emblema
Da flor do maracujá!

Não se enojem teus ouvidos
De tantas rimas em – á -
Mas ouve meus juramentos,
Meus cantos, ouve, sinhá!
Te peço pelos mistérios
Da flor do maracujá!



Fernado Pessoa
Flores

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.



Gonçalves de Guimarães
A Flor Suspiros

Eu amo as flores
Que mudamente
Paixões explicam
Que o peito sente.
Amo a saudade,
O amor-perfeito;
Mas o suspiro
Trago no peito.
A forma esbelta
Termina em ponta,
Como lança
Que ao céu remonta.
Assim, minha alma,
Suspiros geras,
Que ferir podem
As mesmas feras.
É sempre triste,
Ensangüentado,
Quer seco morra,
Quer brilhe em prado.
Tais meus suspiros...
Mas não prossigas,
Ninguém se move,
Por mais que digas.
Gonçalves de Magalhães



Guilherme de Almeida
Flor do asfalto

Flor do asfalto, encantada flor de seda,
sugestão de um crepúsculo de outono,
de uma folha que cai, tonta de sono,
riscando a solidão de uma alameda...


Trazes nos olhos a melancolia
das longas perspectivas paralelas,
das avenidas outonais, daquelas
ruas cheias de folhas amarelas
sob um silêncio de tapeçaria...


Em tua voz nervosa tumultua
essa voz de folhagens desbotadas,
quando choram ao longo das calçadas,
simétricas, iguais e abandonadas,
as árvores tristíssimas da rua!


Flor da cidade, em teu perfume existe
Qualquer coisa que lembra folhas mortas,
sombras de pôr de sol, árvores tortas,
pela rua calada em que recortas
tua silhueta extravagante e triste...


Flor de volúpia, flor de mocidade,
teu vulto, penetrante como um gume,
passa e, passando, como que resume
no olhar, na voz, no gesto e no perfume,
a vida singular desta cidade



Machado de Assis
Livros e flores

Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?

Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?



Manuel Bandeira
Flores Murchas

Pálidas crianças
Mal desabrochadas
Na manhã da vida!
Tristes asiladas
Que pendeis cansadas
Como flores murchas!

Pálidas crianças
Que me recordais
Minhas esperanças!

Pálidas meninas
Sem amor de mãe,
Pálidas meninas
Uniformizadas,
Quem vos arrancara
Dessas vestes tristes
Onde a caridade
Vos amortalhou!

Ai quem vos dissera,
Ai quem vos gritara:
— Anjos debandai!

Mas ninguém vos diz
Nem ninguém vos dá
Mais que o olhar de pena
Quando desfilais,
Açucenas murchas,
Procissão de sombras!

Ao cair da tarde
Vós me recordais
— Oh meninas tristes! —
Minhas esperanças!
Minhas esperanças
— Meninas cansadas,
Pálidas crianças
A quem ninguém diz:
— Anjos, debandai!...



As Flores
Olavo Bilac

Deus ao mundo deu a guerra,
A doença, a morte, as dores;
mas, para alegrar a terra,
Basta haver-lhe dado as flores.
Umas, criadas com arte,
Outras, simples e modestas,
Há flores por toda a parte
Nos enterros e nas festas,
Nos jardins, nos cemitérios,
Nos paúes e nos pomares;
Sobre os jazigos funéreos,
Sobre os berços e os altares,
Reina a flor! pois quis a sorte
Que a flor a tudo presida,
E também enfeite a morte,
Assim como enfeita a vida.
Amai as flores, crianças!
Sois irmãs nos esplendores,
Porque há muitas semelhanças
Entre as crianças e as flores...